domingo, 10 de agosto de 2008

"Aqui meus crimes não serão de amor"



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Entráramos no prédio trazendo as roupas sujas e ainda marcadas pela aventura, os cabelos arrepiados, pequenas manchas de sangue marcavam meu rosto e braços. Não havia tido tempo para cuidar das minhas próprias feridas, pois estivera ocupado cuidando do corpo da amiga. Tudo parecia tão cinzento e sem graça. As sombras de um passado que não era meu estavam me atormentando. A vida de uma pessoa querida me pesava nos ombros agora mais fracos e cansados que nunca. Em algum lugar ele podia ouvir a voz de Freddie Mercury e quase acompanhei a canção.

“Is this the real life? Is this just fantasy? Caught in a landslide, No escape from reality. Open your eyes, Look up to the skies and see, I'm just a poor boy, I need no sympathy, Because I'm easy come, easy go, little high, little low, Any way the wind blows doesn't really matter to me, to me.”

Mas contive-me a tempo, aquele não era um bom momento pra cantar ou rir.
Cuidara das coisas que ela havia deixado, ocupei-me com mil pequenas detalhes, adiando o momento de dizer à minha mulher que sua amiga e irmã tinha morrido e que eu não fiz nada para salvar ou para impedir. Por quê? Tinha todas as explicações, planejadas tudo milimetricamente cuidado.

“Mama just killed a man, Put a gun against his head, pulled my trigger, now he's dead. Mama, life had just begun, But now I've gone and thrown it all away. Mama, ooh, didn't mean to make you cry, If I'm not back again this time tomorrow, Carry on, carry on as if nothing really matters.”

– Merda! Como desligo essa maldita música?

– Que música?

Demorei alguns segundos para entender que a canção estava em mim, fazia sentido; eu e meu cérebro nos entendíamos bem. Aquilo parecia mesmo uma ópera rock.
Queria que alguém, por misericórdia, dissesse que eu não era um covarde, que alguém explicasse porque que eu estava no lugar errado. Protegendo a pessoa errada? Porque naquele momento não fiz nada?

“I see a little silhouette of a man, Scaramouche, Scaramouche, will you do the Fandango. Thunderbolt and lightning, very, very fright'ning me. (Galileo.) Galileo. (Galileo.) Galileo, Galileo figaro Magnifico. I'm just a poor boy and nobody loves me. He's just a poor boy from a poor family, Spare him his life from this monstruosity.”

Porque naquele momento não percebi que ela estava morrendo? Sentia-me miseravelmente culpado.

“(Let him go!) Bismillah! We will not let you go. (Let him go!) Bismillah! We will not let you go. (Let me go.) Will not let you go. (Let me go.) Will not let you go. (Let me go.) Ah. No, no, no, no, no, no, no. (Oh mama mia, mama mia.) Mama mia, let me go. Beelzebub has a devil put aside for me, for me, for me.”

Arrastei-me até o quarto andar do hospital e ao chegar à porta encontrei o fantasma sombrio do outro, o rival que parecia tão perfeito em seu ar preocupado. Mal olhei para o meu antigo amigo. Sentia como se a culpa do mundo inteiro estivesse sobre meus ombros. E estava mesmo, afinal era culpado, mas ninguém precisava saber.

“So you think you can stone me and spit in my eye. So you think you can love me and leave me to die. Oh, baby, can't do this to me, baby, Just gotta get out, just gotta get right outta here.”

O outro ficou parado em silêncio à porta do quarto enquanto eu me obrigava ir até ela. Meus passos eram arrastados. O peso do mundo estava em meus ombros. De tanto pesar, minha cabeça estava baixa. Nem conseguia encarar a mulher ali deitada. Notei, preocupado, como estava pálida. Levantou-se com algum esforço e ficou de pé diante de mim. Nossa! Como era bonita! Mataria de novo apenas pela chance de estar com ela, mas ela não precisava saber ninguém precisava. Apenas eu e a morta.

– Onde ela está?

Permaneci em silêncio. O rival se mantinha igualmente mudo parado à porta.

– Deus! Os dois resolveram brincar do mesmo jogo? RESPONDE!

“Nothing really matters, Anyone can see, Nothing really matters, Nothing really matters to me. Any way the wind blows.”

Falar era tão complicado, eu poderia rir, queria rir, mas me limitei a balançar a cabeça, ela mordeu o lábio inferior nervosamente, lendo a resposta nos meus olhos.

“I see a little silhouette of a man, Scaramouche, Scaramouche, will you do the Fandango. Thunderbolt and lightning, very, very fright'ning me.”

Então, através das lágrimas viu meu rosto abatido e cansado. Sufocou o grito de raiva, impotência e medo e abriu os braços num convite mudo. Eu aconcheguei-me ao abraço da mulher, como se fosse uma criança perdida. Matar era tão cansativo. Deixar morrer também, tudo absurdamente patético e cansativo. O cheiro dela era tão bom.

“(Galileo.) Galileo. (Galileo.) Galileo, Galileo figaro Magnifico. I'm just a poor boy and nobody loves me. He's just a poor boy from a poor family, Spare him his life from this monstruosity.”

O outro saiu sem dizer nada enquanto permanecemos nos acalentando mutuamente por um longo tempo. Ainda ali... Sentia-me fraco e covarde novamente... Nem uma palavra conseguia dar... Apenas afogar as lágrimas no ombro dela. Ainda podia ver o corpo da amiga morta estendido na pedra fria e estremecia ao pensar que ela morrera por nada.

Não posso dizer que matei por amor, era prático demais para isso, poderia ter ficado com as duas eternamente, mas aquela maldita frase me fez escolher. Porque diabos ela tinha de ser tão clichê e me fazer escolher entre as duas?



(Rosa Cardoso)

1 comentários:

Cel Bentin disse...

De pequeno este espaço só tem a menção do nome... Ele epifania é estreito no aqui por dentro, ainda além dos crimes e das abas desse dentro vermelho... rs

Parabéns, Rosa!